sábado, 31 de março de 2018

JALAPÃO 3. O COTIDIANO E O EXTRA COTIDIANO NO DESENVOLVIMENTO DE CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO AMBIENTAIS DE PROTEÇÃO E PRESERVAÇÃO DO JALAPÃO.

ENSAIOS EXPERIMENTAIS EM PSICOLOGIA
AMBIENTAL FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL 
JALAPÃO
SANTUÁRIO DAS ÁGUAS 3
O COTIDIANO E O EXTRA COTIDIANO NO DESENVOLVIMENTO DE CONSCIÊNCIA E ATENÇÃO AMBIENTAIS DE PROTEÇÃO E PRESERVAÇÃO DO JALAPÃO.
Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.
Não obstante a sua imensa importância ambiental, o Jalapão (a região), para além de suas comunidades locais, e do fluxo crescente de turistas e visitantes, ainda é muito pouco conhecido. Nem sempre os visitantes apre-endem, junto com a beleza de sua natureza, a fantástica dinâmica e importância ambiental.
As informações que são veiculadas sobre a região ainda são muito fragmentárias, pouco informadas, parciais, ou distorcidas.
A questão urgente é a da proteção e da conservação do Jalapão contra as agressões e destruição já em curso. Em particular, as agressões e destruição provocadas pelas queimadas, pelo plantio soja, de eucaliptos, e outras plantações, e pela pecuária. Que já produzem danos muito significativos. Danos que podem se tornar irreversíveis.
A questão central é a de proteger e conservar o ciclo ambiental das águas do Jalapão. Como forma de proteger o ciclo ambiental das águas no mundo e no Brasil. Em particular nas bacias dos Rios Tocantins e Amazonas, na bacia do Rio Parnaíba, na bacia do Rio São Francisco; e dos sistemas ambientais brasileiros e mundiais de que eles participam.
Isto requer o desenvolvimento de uma consciência, em particular de uma consciência ética, e de uma atenção ambiental local, regional, brasileira, e mundial -- com relação ao que é o Jalapão, e com relação à necessidade da efetivação de ações ambientais, governamentais e não governamentais, de proteção e de conservação.
É importante observar que tanto o Governo Federal como os governos estaduais estabeleceram importantes reservas ambientais no território do Ja-lapão. Reservas que são importantes conquistas, e importantes pontos de partida. Mas que são ainda insuficientes.
Como, junto com o desconhecimento, dissemina-se a noção de que a região é uma região excepcional, há um interesse crescente pelo Jalapão; interesse especializado, e interesse turístico. Mas uma enorme carência de informações fidedignas.
A questão se complica, ainda, quando as populações externas apreendem de um modo distorcido o significado do Jalapão. Como um deserto no Brasil Central, por exemplo; ou como um oásis, etc.
O que não esclarece e confunde a consciência coletiva.
A designação da região com o termo Jalapão, forte e estritamente en-raizada na tradição da cotidianidade local, como vimos, confunde e prejudica a compreensão do que ele efetivamente significa. Tanto por parte das populações locais, como por parte dos visitantes.
Esta perspectiva de compreensão mais abrangente e essencial do Jalapão – como de qualquer ambiente -- só pode ser dada por uma perspectiva e ótica não cotidianas, extra-cotidianas. O que conflita com os sentidos cotidianos de compreensão e da designação da região.
É interessante considerar que a vida social se estrutura nas esferas da vida cotidiana, e da vida não cotidiana . A esfera da vida cotidiana é a esfera da linguagem, dos usos e dos úteis; da mesma forma que a esfera das pessoas particulares e das particularidades, esfera das objetivações em si. A esfera da vida não cotidiana é a esfera da vida remetida à genericidade humana, e a esfera das objetivações para si. A esfera da Ciência, da política, da literatura, da ética.
É, assim, muito necessário -- ao lado da valorização e do respeito pela perspectiva e ótica cotidianas -- o desenvolvimento regular e durador da cultura de uma perspectiva, e de uma ótica, de uma ética, extra cotidianas, na apreensão e na avaliação do Jalapão. Uma perspectiva extra cotidiana que possa esclarecer e apreender os seus sentidos mais essenciais e abrangentes, o sentido de sua importância ambiental, da necessidade, dos modos, e da mobilização, da ação, institucional e informal, governamental e não governamental, por sua proteção e conservação ambientais.
Ou seja, a cultura de uma compreensão do Jalapão na esfera da extra cotidianidade que caracterizam a Biologia, a Cultura e a Política ambientais, a Ciência, a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia, o Direito, os movimentos sociais, e as instituições da sociedade civil...
Esfera extra cotidiana esta que se interpenetra, mas que está fora, da esfera das objetivações em si da vida cotidiana do Jalapão.
A distinção, e as relações, entre a vida cotidiana, e a vida extra coti-diana nos permitem, assim, entender questões muito importantes com relação ao Jalapão, com relação ao ambiente, e com relação a conservação ambiental.
Desta forma, pensar as distinções, e interpenetrações, das esferas sociais da vida cotidiana e da vida extra cotidiana em termos do Jalapão é extremamente necessário. Isto porque existe uma significativa contradição entre o que significa o Jalapão ambientalmente -- significado que só pode ser apreendido numa ótica e perspectiva de culturas extra-cotidianas, das obje-tivações genéricas da humanidade --; e a sua apreensão, inclusive a sua designação, na esfera cotidiana das populações que o habitam, e das que o visitam, na esfera das objetivações em si da vida cotidiana, adstrita à coti-dianidade da linguagem, dos usos e dos objetos.
A designação como tal do Jalapão tem um sentido original cotidiano, local que tende a se perder cada vez mais, para a própria população local, tornando-se um termo cada vez menos significativo; e que não traduz, na verdade esconde, ou que conflita, com o que significa efetivamente o Jalapão, em termos geológicos e ambientais; em termos do que significa o Jalapão para as populações das bacias dos rios Parnahyba, São Francisco, e do Tocantins; em termos do que significa o Jalapão para a Bacia Amazônica, para o Brasil, para a Terra, para a Humanidade, num tempo em que urge o desenvolvimento de uma consciência crítica e ativa da necessidade de um respeito pelas águas, pela preservação de seus mananciais, reservatórios, e ciclos...
Uma coisa é, assim, o significado e a importância do Jalapão para aquelas exíguas comunidades que o habitam, e para as quais o Jalapão tem um sentido e importância na vida cotidiana. Mesmo para as outras comunidades ribeirinhas dos riachos e rios que emanam do Jalapão, e que têm nessas águas um elemento central de sua vida cotidiana.
Outra coisa, distinta -- que não anula nem desvaloriza a esfera da cotidianidade --, é ganhar distância das esferas de objetivações em si da vida cotidiana, e apreender, e compreender o Jalapão de uma perspectiva não cotidiana, da ótica e perspectiva da genericidade humana, das objetivações genéricas do humano; ou seja, da esfera não cotidiana da humanidade, que en-volve, dentre outras, a ótica da ambientologia, da ciência, da filosofia, da política, da arte, da gestão ambiental do presente e do futuro da humanidade.
A perspectiva não cotidiana do Jalapão permite uma apreensão dele e de sua importância para além dos estreitos, e pobres, limites da cotidianidade.
A importância dele como aqüífero imenso e importantíssimo, depositário e provedor, possibilitador, de águas puras e abundantes; a importância dele para comunidades ao longo dos rios das bacias que ele nutre: a importância dele para as comunidades ao longo do Rio Parnaíba, que vai cortando o Piauí, até o seu Delta monumental, o maior delta das Américas. A importância dele para o Rio São Francisco, e para as suas populações barranqueiras e não barranqueiras, sertanejas, até o seu desaguar, na sua foz, entre Alagoas e Sergipe, na altura do pontal do Peba. A importância do Jalapão na constituição das águas da Bacia do Tocantins, e, daí, na constituição das águas dos rios da Bacia do Amazonas...
Para além do chão calcinado de areia decorrente da decomposição de pedra vermelha, para além da sensualidade dos belíssimos e charmosos rios, e riachos, brejos, lagos, fervedouros, corredeiras e cachoeiras; para além das águas para os mergulhos e banhos puríssimos, e deliciosos; para além da puríssima, e vital, água de beber das populações autóctones; para além da água abundante para suas cotidianas lavadeiras – tudo muito importante, evidentemente --, o Jalapão tem uma importância extra cotidiana fundamental, e histórica, para outras comunidades, ao longo das linhas e sinuosidades dos cursos d’água que ele engendra e generosamente nutre. São tantas, e tão vastas, na Bacia do Tocantins, na Bacia do Amazonas, na Bacia do São Francisco, na Bacia do Parnaíba, para o clima e a qualidade de vida na Terra. Na verdade, efetivamente, uma importância histórica e fundamental para a humanidade como um todo. Importância que o nível de apreensão da cotidianidade, efetiva e decididamente, não pode dar conta...
Assim, a designação, histórica e cotidianamente constituída, de Jalapão não é suficiente para a importante apreensão dele na perspectiva extra cotidiana. E, mais que isto, confunde. Em particular, diante das confusas in-formações de que o Jalapão seria um deserto do Estado do Tocantins, em função de suas dunas, (decorrência, na verdade, da erosão eólica e pluvial da Serra do Espírito Santo), confusa e paradoxalmente ornado de rios e ca-choeiras...
Na verdade, o que caracteriza o Jalapão é o seu monumental fenômeno água.
Águas de enorme importância. Para as populações que lá habitam, e para as populações dos rios das bacias para que ele contribui. Para o clima, para as condições e qualidade de vida no Brasil, e para o clima, condições e qualidade de vida na Terra.
Definitivamente o Jalapão precisa ser protegido, conservado, e rigo-rosamente respeitado ambientalmente. E as perspectivas da cotidianidade das rarefeitas populações do Jalapão não poderiam, naturalmente, nem com-preendê-lo enquanto tal, muito menos protegê-lo e conservá-lo.
Até porque, no caso da proteção e da conservação, as agressões e destruições ao Jalapão, em particular as decorrentes do plantio intensivo, usurário e irracional de soja, não advêm da esfera da cotidianidade das rarefei-tas populações, e só podem ser entendidas, afrontadas e confrontadas, a partir de iniciativas oriundas de setores da não cotidianidade, pertinentes à cultura ambiental.
De modo que, é preciso desenvolver uma ética, uma consciência, e uma atenção ambientais, ambientativas, não cotidianas com relação ao Jalapão. Chega da veiculação de distorções e informações distorcidas com relação ao Jalapão para as integrações não cotidianas que por ele se interessam.
Progressivamente, as comunidades cotidianas do Jalapão, sem a perda de sua especificidade, integrar-se-ão a uma mentalidade não cotidiana a respeito dos significados e sentidos do Jalapão. E de como estes sentidos podem estar ligados, e potencializar, os seus meios de vida cotidiana. O que é fundamental, porque são estas comunidades que podem ser os guardiões cotidianos do Jalapão. É fundamental, e urge, uma melhora e progressiva otimização efetivas das condições e das qualidades de vida dessas comunidades, em função delas mesmo, e como recurso estratégico de sua proteção e conservação.
Por outro lado, o desenvolvimento de uma mentalidade ambientalmente responsável, e ambientalmente ativa, não cotidiana, no Brasil, e por todo o mundo, com relação ao Jalapão, passa por uma elucidação do que ele efe-tivamente é, para além de um nome exótico, para além da idéia de que se trata de um deserto no Brasil Central (um absurdo efetivo), ou coisas do gênero. Passa, igualmente, pelo conhecimento lúcido e claro, objetivo, atento e ativo da natureza e dos processos das destruições e agressões por que passa um ecossistema tão precioso. E pelo desenvolvimento efetivo, em todas as esferas, de ações ecologicamente necessárias para afrontar e enfrentar não cotidianamente as agressões e destruições, cotidianas, e não cotidianas.
Bibliografia
BEHR, .M. JALAPÃO – SERTÃO DAS ÁGUAS, São Bernardo do Campo, Somos,.
HELLER, Agnes SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA, ,Madrid, Taurus.

JALAPÃO 1. SANTUÁRIO DAS ÁGUAS.

ENSAIOS EXPERIMENTAIS EM PSICOLOGIA
AMBIENTAL FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL 4.
SANTUÁRIO DAS ÁGUAS 1
Jalapão
Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.
O que é o Jalapão?
Esta pergunta subjaz a um interesse cada vez maior pelo Jalapão. E a uma oferta de informações fragmentárias e sumárias, não raro distorcidas, ou franca-mente errôneas.
De longe às vezes não é fácil de discernir.
Uma coisa é ponto pacífico, e indo pela ordem de prioridades, e direto ao assunto: o chamado Jalapão é em seu subsolo um imenso aqüífero, situado na região de ecótone entre as Caatingas dos Sertões do Sudoeste do Estado Piauí, do Sul do Estado do Maranhão, e do Extremo Oeste do Estado da Bahia, por um lado; por outro, o Cerrado e a Amazônia do Sudeste do Estado do Tocantins.
Uma região que tem, como limites Ocidentais, a Chapada das Mangabeiras (antiga Chapada da Tabatinga); como limite Oriental Meridional, a Cidade de Ponte Alta, no Estado do Tocantins; e como limite Oriental Setentrional a Cidade de Novo Acordo, também no Estado do Tocantins.
De forma que, grosso modo, a região do Jalapão forma um triângulo. Tendo como vértice Oriental a Chapada das Mangabeiras; como vértices Ocidentais as cidades de Novo Acordo, ao Norte; e a cidade de Ponte Alta, ao Sul.
Fitogeograficamente a região guarda características intermediárias da flora, com a concomitante fauna, do Cerrado, e do Sertão; com características, igual-mente, da Amazônia.
Da Chapada das Mangabeiras, nasce, de um lado, o Rio Parnaíba, pelo Rio Parnaibinha; de outro lado, nascem os afluentes do Rio São Francisco, como o Sa-pão e o Preto; de outro lado, nascem os afluentes do rio Tocantins, como o Rio Galhão e o Rio Formoso, que vão desaguar no Rio do Sono, depois no Rio Novo; o Rio Ponte Alta, e o Rio das Balsas. De modo que nascem na Chapada das Manga-beiras, no Jalapão, rios que vão contribuir com as águas de três importantes bacias de rios brasileiros: a do Parnaíba, ao Norte; a do São Francisco, a Leste; e a do Tocantins, a Oeste.
No âmbito do Jalapão, inclusive, misturam-se, em suas origens, águas origi-nárias da bacia do Rio Tocantins e da Bacia do São Francisco, caracterizando o que se conhece em hidrologia como o fenômeno de águas emendadas.
As areias quartzosas da Serra do Espírito Santo fazem com que ela se des-faça lentamente, sob a ação da erosão eólica e pluvial . As areias conduzidas pelo vento se acumulam diante da Serra, ganhando a forma de dunas. O que confere a esta área do Jalapão uma aparência de deserto.
A aparência de deserto é também conferida pelo ambiente seco, arenoso e poeirento de Cerrado e de Sertão, de uma superfície geológica decorrente da de-composição de pedra de areia vermelha. E do fato de que as águas descem para o subsolo de imensa receptividade, e capacidade de armazenamento, aflorando nos cursos determinados dos riachos e rios, lagos e brejos.
Por outro lado, as areias que se desprendem da Serra do Espírito Santo, formam as famosas dunas do Jalapão. Que lembram dunas de deserto. Mas, nada mais equivocado. A água abundante, inclusive em torno das dunas, e subterrâneas.
Mas é por isso que se pensa freqüente, e equivocadamente, que o Jalapão é uma espécie de deserto. Na verdade, apesar da aparência ressequida da superfície de Cerrado, ou mesmo de Caatinga, o Jalapão é mesmo um portentoso aqüífero, que verte uma impressionante quantidade de águas, pelos seus rios, riachos, lagos, fervedouros. Águas que contribuem de um modo importante, como dissemos, para a constituição das mencionadas bacias.
Em tempos de formação da Terra, a região do Jalapão estava submersa pelo imenso mar interior que se iniciava com o Rio Amazonas, e terminava no Rio da Prata, ocupando grande parte do Centro e do Oeste do Brasil. Suas águas atuais, além de retidas da chuva num imenso sistema de pequenas bacias de captação, e armazenadas no seu subsolo, são águas remanescentes ainda das fontes formado-ras do Mar pré-histórico. Vindas, certamente, do Norte, da Amazônia, dos Andes, e dirigindo-se, céleres, para o Sul, em direção ao extraordinário Aquífero Guarani.
Mas há uma razão, ainda, para a idéia de que o Jalapão é um deserto. O ja-lapão é, ainda hoje um deserto de gente. Tem uma das menores densidades popu-lacionais do país. Podemos caminhar por horas e horas, por dias, sem encontrar uma viva alma.
A região foi ocupada, desde a pré-história, por paleo-índios. Que precede-ram os Indígenas, em particular os índios Croas.
Mateiros, o povoado conhecido como “a capital do Jalapão”, foi fundado, segundo a sua história, por caçadores vindos do Piauí, do Maranhão, e da Bahia.
Com a colonização, brancos e mestiços chegaram à região, dizimando os in-dígenas.
Durante a febre da borracha, na primeira metade do século XX, a região foi invadida por colonos do Maranhão, em busca do látex, produzido pelas mangabei-ras da Chapada da Tabatinga (depois denominada de Chapada das Mangabeiras), para a fabricação de borracha. Até que a demanda pela produção da borracha bra-sileira entrou em declínio, o que certamente levou mais habitantes para a região, em função do enorme drama social decorrente da decadência da produção de bor-racha na Amazônia.
Muito antes, como dissemos, nos tempos de formação geológica da Terra, toda a região do Jalapão, e do Brasil Central, foi o fundo de um mar interior. Mar este que adentrava o continente na região amazônica, e se espalhava pelo Brasil Central; novamente se conectando ao oceano externo na altura do Rio da Prata.
As idas e vindas desse mar -- e sua ida definitiva, em função da elevação da Cordilheira dos Andes -- deixou na região do Jalapão um subsolo de arenito. Este tipo de rocha é altamente permeável à água, podendo captá-la e reter com uma enorme capacidade de armazenamento. Podendo, assim, acumulá-la em enormes proporções, vertendo-a subsequentemente em águas superficiais.
No solo superficial da região pode-se perceber o relevo modelado pelos mo-vimentos do mar. Seja nas rochas, seja nas curiosas terras em formato de conchas, ou de bacias, com córregos atapetados de fina areia branca, que coletam as águas das chuvas, e conduzem-nas aos riachos e aos rios; e, certamente, ao aquífero subterrâneo.
O sub-solo do Jalapão caracteriza-se, assim, e caracterizou-se, ao longo dos milênios, como um subsolo com uma imensa capacidade de receber, armazenar e verter a água armazenada; um imenso aquífero. Muita água já é perenemente ar-mazenada neste subsolo. As chuvas anuais, no período de Setembro-Outubro a Abril, anualmente, repõem a água vertida. De modo que o Jalapão é sempre um portentoso aqüífero. Cognominado por alguns como Caixa D’Água do Brasil. O que efetivamente é pouco enquanto designação.
As chuvas cuidam assim, anualmente, de regenerar e re-plenificar a enorme e impressionante capacidade de absorção e de armazenamento de águas desse subsolo aqüífero. De modo que as águas mantêm lagos, rios e regatos perenes. E o aquífero se mantém como um impressionante fenômeno hídro ecológico, em que as águas brotam do solo abudantíssimas, freqüentes e intensas, tanto por sua força eruptiva como pela força da gravidade na descida para os rios que vão se constituir nos afluentes do Parnaíba, do Tocantins e do São Francisco.
Localmente, estas águas configuram um impressionante fenômeno hídrico, compondo uma infinidade de rios, riachos e regatos, que cruzam toda a região, com suas quedas d’água, cachoeiras e corredeiras, mais ou menos intensas; lagos, e brejos. Muitos dos laguinhos se formando a partir de águas que brotam com tal força e intensidade que nelas boiando uma pessoa não consegue afundar, tal é a pressão com que essas águas brotam da terra. São os chamados fervedouros, nos quais a água borbulha vigorosa, a partir, do chão em branca e finíssima areia. Em alguns locais os rios podem ser tão torrenciais que permitem a prática do rafting, em locais que podem ser considerados como dos melhores do mundo para tal prá-tica.
Muito diferentemente do modo como frequentemente se pensa o Jalapão, como um deserto, em função da aridez da maior parte de sua superfície, e em função das dunas de areias quartzosas, decorrentes da decomposição da Serra do Espírito Santo, muito diferentemente, o Jalapão é, especificamente, um imenso fenômeno hídro ecológico – um imenso e belíssimo aquífero. Que reivindica, de um modo irrecusável, a nossa admiração e perplexidade, o nosso respeito, carinho, e decidida proteção e conservação.
Bibliografia
BEHR, M. JALAPÃO – SERTÃO DAS ÁGUAS, São Bernardo do Campo, Somos,.
HELLER, Agnes SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA, ,Madrid, Taurus.

JALAPÃO 2. JALAPA, LAPA, LAPÃO, LAPADA, LAMBADA, JALAPÃO

ENSAIOS EXPERIMENTAIS EM PSICOLOGIA
AMBIENTAL FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL 4.
JALAPÃO
SANTUÁRIO DAS ÁGUAS 2
JALAPA, LAPA, LAPÃO, LAPADA,
LAMBADA, JALAPÃO
Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.
O que significa Jalapão?
O termo Jalapão decorre de uma a planta designada como Jalapa (Ipomea cuneifólia). No caso, a Jalapa Grande, Jalapão.
A nossa popular e sensual Dama da Noite, de sublime e generoso, in-superável, perfume, ao começo da noite, pertence à família da Jalapa (Ipomea Alba). Talvez a pudéssemos chamar, não sem algum carinho, de Jalapinha. Carinho em particular pelo modo como ela alegra nossas vidas, espalhando generosa e gratuitamente o seu sublime e doce perfume, e com as cores generosamente vivas de suas flores. Particularmente pequenas, quando comparadas com as flores e tubérculos (batatas) do Jalapão.
Outro membro nobre da família é a nossa insuperável, e simples, Batata Doce (Ipomea Batatas). Fundamental na nossa alimentação.
Certamente que existe na região do Jalapão toda uma tradição popular erótica, e deliciosa, mais ou menos clandestina, e incrível, e incrivelmente sen-sual, com relação à Jalapa. Erótica popular tradicional que pode remontar aos índios que habitaram a região*. E certamente remonta à cultura descendente dos mateiros e colonizadores que remotamente a colonizaram. Com relação à Jalapinha isto pode não se manifestar, além da referência ao sensual perfume, à boca da noite... Não é ingênua, certamente, a sua designação como Dama da noite...
Existem variedades diversas da Jalapa.
As flores da planta Jalapa são igualmente denominadas de Jalapa. E a planta Jalapa também possui um tubérculo oblongo, e subterrâneo, a batata da Jalapa, como a Batata Doce. Igualmente denominado de Jalapa. Assim, a designação de Jalapa refere-se tanto à planta, como a flor da planta, e ao seu tubérculo.
A Jalapa (a bela flor branca) da Jalapa (a planta) da região do Jalapão (Jalapa grande, uma lapa de Jalapa), é bem maior do que a nossa querida Ja-lapinha.
E é, por isso, chamada de Jalapão.
Maior, também, a Jalapa, Jalapão; o tubérculo, a batata da Jalapa do Jalapão. Que fica enterrada no chão, no interior de nossa feminina mãe Terra.
Assim, no caso do/da, Jalapão (a Jalapa da região e que dá o nome à região do Jalapão) a coisa toma outros sentidos metafórico sensuais e sen-soriais. O/A Jalapão é assim uma flor grande, bem maior que a da Jalapinha. E a batata do Jalapão, oblongo tubérculo, é bem maior que o das outras Jalapas, inspirando o entusiasmo e a sensualidade da erótica popular.
As flores da Jalapão, como as das orquídeas, insinuam sensualidade. Não só pelos aromas adocicados de seus perfumes, mas, em particular, pelas suas formas. Vistas de frente, insinuam delicadas formas de vulva. O/A Jalapão se complementa com um profundo canal, até os seus órgãos mais internos. De onde, certamente, provém um aspecto do sentido do termo lapa de sua designação, talvez o sentido mais originário, na língua latina.
Em sua forma oblonga, o tubérculo da Jalapa do Jalapão é maior do que os tubérculos das outras Jalapas. Permanece enterrado na terra. Ícone analógico da relação erótica, poderoso apelo à sensualidade da erótica popular de uma população que vivia imersa e circunscrita em poderosa relação como riquíssimo e profundo ambiente natural.
O Jalapão (a planta), assim, oferece uma inspiradora analogia erótica que certamente afetava e afeta à cultura e as pessoas das rarefeitas comunidades do Jalapão. Além de ser uma planta que insinua sugestivamente nas formas de suas flores a representação da vulva e da vagina femininas; insinua nas formas de seu tubérculo o órgão sexual masculino; e é ela toda uma insinuação da representação do intercurso sexual, ainda sugerido pelo fincamento, no solo da terra, e interação com a terra, de seu tubérculo.
O termo Lapa tem um sentido e derivações de sentido interessantes. Originalmente ele tem o sentido de cavidade. Mas não foi apenas com esse sentido que eu o aprendi quando criança. Claro que lapa sempre disse respeito às lapinhas de natal, ou dos santos católicos, grutas onde se armavam os personagens do drama cristão do nascimento de Jesus Cristo, ou de um santo, ou santa.
Mas lapa sempre disse respeito, também, ao tamanho de um objeto de grandes proporções. E se me permita dizer, são comuns no Nordeste ex-pressões como, por exemplo, uma lapa de mulher!, ou Uma lapa de buceta! Uma lapa de cacete (genital, ou não)!
Lapada, no sentido de pancada com um objeto oblongo e flexível, numa surra, por exemplo; o que eu acho que remete a surras com as oblongas, e lapadas, ocas, bainhas de espada; e, posteriormente, de facão, tristemente comuns em uma certa época do Nordeste e do Brasil.
Ou ainda, por derivação desta última, a performance machistamente masculina no intercurso sexual.
Relativo também a lapada, é o termo lambada, da sensual dança. (Sem comentários).
E eu não precisaria explicar, em função do hit popular que dominou o último carnaval no Nordeste, o sentido da expressão lapada na rachada. Imagino que na linguagem da erótica popular do Jalapão a expressão mais adequada poderia ser lapada na jalapa; bem no sentido, talvez, de que o buraco certamente é mais para dentro.
O que aqui importa, todavia, é a curiosidade de que a anatomia do (a) Jalapão (a planta), em específico de sua flor, e de seu tubérculo, e a relação deste seu tubérculo com a terra, oferecem inspiração e sugestão à sensualidade erótica da tradição popular, numa icônica não só de orgãos, mas de relação e harmonia sexual... De tal modo que termos que nele cabem, como lapa, lapada, jalapa, jalapão, podem se referir, igual e alternativamente, ao órgão genital feminino, e ao órgão genital masculino; da mesma forma que podem se referir, de modo entusiástico e celebrativo, ao intercurso sexual.
Acho que não sem motivo, o termo Jalapão designou a região, e faz parte, de um modo intenso, do imaginário e da erótica popular.
Não sem motivo, certamente, também, ouvi, por várias vezes, no Jala-pão, em Ponte Alta, em pleno mês de Setembro, sete meses depois do carnaval, carros com poderosas, e horrorosas, caixas de som tocando alegremente Lapada na Rachada -- o hit do último carnaval no Nordeste -- os donos com olhares marotos e ousados, danças sensuais...
De modo que o uso do termo está longe de se dever às qualidades fi-toterápicas purgativas, e outras, do Jalapão (a planta).
Estes sentidos, ainda, podem ser interessante e importantemente desdobrados e elucidados, na direção de toda uma erótica cósmica que a hidrologia geológica do Jalapão protagoniza. E do deleite e necessidade da cultura das comunidades locais e das pessoas de se integrarem a esta erótica. Eroticamente.
Em termos antropológicos, assim, é, certamente, algo de muito inte-ressante como o Jalapão (a planta) veio metaforicamente a significar, de um modo poderosamente sensual, as genitálias masculina e feminina, a relação sexual em específico, e o intercâmbio em geral masculino/feminino de Yin e de Yang. Em específico, mais precisamente, o equilíbrio de Yin e de Yang, de masculino e feminino.
O Jalapão (o lugar) é -- e trabalhemos para que continue sendo -- um lugar imensamente saudável em termos geológicos, de uma impressionante potência de saúde. Potência generativa. As águas do Jalapão são filhas e filhos telúricos do encontro potente e saudável do céu com a terra.
A potência da terra, potência de yin, feminina desde sempre, é avas-saladora. Em sua potência receptiva, ativa, ela recebe o céu, yang, as águas do céu, com uma receptividade imensa, monumental, geo-lógica... Como se fosse um imenso imã a atrair o Céu...
Durante bilhões de anos, a formação da superfície geológica do terreno do Jalapão, que foi fundo do mar interior do Brasil -- tipicamente em sua dimensão yin -- tem uma morfologia incrivelmente receptiva. O terreno tem, literalmente, o formato concavado de pequenas e sucessivas bacias, ou conchas. Que, de um modo generoso e diligente, coletam, sistematicamente, as tor-renciais águas da chuva. Temos a deliciosa e sagrada impressão de que, ritualmente, nenhuma gota de chuva se perde no Jalapão. Coletadas pelo terreno as águas são torrencialmente carreadas por estas sucessivas bacias, ou conchas, coletoras.
Um chão generosamente atapetado por uma ária branquíssima, finíssima, quartzosa...
Deslizando e rolando por sobre a areia, que parece impermeabilizar-se, de tão unidos que ficam os seus finos grãos, as águas das chuvas são levadas a uma rede de milhares de córregos temporários, pontual e rigorosamente formados por elas, em direção à perenidade dos riachos e regatos do Jalapão. Que, serpenteante, e vigorosamente, se encarregam de conduzi-las aos rios.
O Rio Formiga, para Oeste. Que, passando por sua cachoeira, de águas verdes, vai para o Rio Novo (o Rio Formiga, antes de sua cachoeira, tem também uma poderosa nascente subterrânea); o Rio Novo joga suas águas no Rio do Sono; que, por sua vez, vai ao Tocantins...
O Parnaibinha, o Parnaíba – Ao Norte.
O Galhão, o Preto, o São Francisco –- a Leste...
Não só vinda do Céu, mas num alternativo modo yang de ser, a água também brota profusa e vigorosamente da terra no Jalapão. Nas nascentes vigorosas dos rios e riachos, e nas dezenas de Fervedouros. Pequenos lagos, nos quais -- na quartzosa e branca e finíssima areia -- ela borbulha. Pe-renemente.
Boiando nesses laguinhos, não conseguimos afundar -- dada a força com que a água brota do chão...
Mas, no Jalapão, a água também pode, inesperadamente, minar em fonte, por exemplo, no centro da sala da casa de um Caboclo. Como ouvi um narrar como surgiu uma mina d’água no chão de sua casa de areia.
De suas alturas, o céu anualmente condescende a descer (anualmente, de Outubro a Abril). E Céu e Terra, Yin e Yang, o Masculino e o Feminino cósmicos, se encontram. Plenificada, na harmonia deste encontro, a terra – que normalmente tende a descer – inverte a sua tendência normal, e sobe, e borbulha, água, nos fervedouros, e lagos, e verte-se nos rios e regatos, de-ságua nas cachoeiras, abundantemente, fluindo em corredeiras e cachoeiras, e nas correntes, preguiçosas, ou velozes -- agora já Yang, nessas características -- para ir nutrir (Yin) as terras imensas das bacias às quais ela novamente vai nutrir.
Na verdade, protagonismo de uma imensa e desmedida erótica cósmica. É esta erótica que constitui o Jalapão. Seus fervedouros, lagos, regatos, correntes, rios e riachos... e a sua gente.
Psicologicamente falando, existencialmente, conviver com esta erótica telúrica e cósmica exige, igualmente, saúde. Na verdade, um certo grau de sacralização dela, para nela se poder integrar. Assim como, nos Andes, os Incas sacralizaram as montanhas, o lago, o altiplano, as estrelas, a lua, o arco-íris, o lago, a água...
A erótica do Jalapão não é simplesmente uma erótica mundana e vulgar. É uma erótica sagrada, que se integra com a poderosa erótica cósmica do ambiente.
As rarefeitas e isoladas populações do Jalapão, mais acessível nos tempos remotos, a partir do Sertão do Piauí, do Maranhão, e da Bahia, tiveram que co-habitar com esta imensa saúde, e com esta imensa erótica cósmica, constituída pelas chuvas anuais do céu, pela imensa receptividade e poder de acumulação da Terra, e pelas vertentes nas veredas e lagos das limpíssimas e abundantes águas.
A sensualidade desta erótica impregnou, certamente, a erótica das re-lações inter humanas. Em particular de uma população que conviveu, e em parte descendeu, dos indígenas.
A Jalapa, o Jalapão forneceu em sua anatomia poderosos elementos para a metaforização da tradição popular desta erótica, e temos aí a erótica da Jalapa e do Jalapão, e a designação deste imenso aqüífero, Santuário de águas do Brasil.
O Jalapão (a planta) foi, e ainda, é, certamente, um elemento importante da farmacopéia fitoterápica nativa das populações rarefeitas e isoladas. Para uma noção das condições de saúde, conta-se que quando uma pessoa adoecia no Jalapão, ela era carregada por cinco dias em uma rede, por vinte pessoas que se revezavam. Até uma fazenda da região. De lá ela era conduzida até Porto Nacional. Se não fosse muito grave, efetivamente...
Dentre outros usos, o Jalapão é medicamento efetivo na farmacopéia nativa local como purgativo. Contra hidropsia, contra icterícia, obstrução de vísceras, e corrimento vaginal...
Há ainda uma característica muito curiosa das propriedades do Jalapão (a planta), que certamente teve, e tem poderoso apelo à imaginação popular... O Tiú é um grande e valente lagarto, que não enjeita uma boa briga com uma venenosíssima cascavel, comum na região. Quando é picado pela cobra, o Tiú corre para o meio do mato, em busca de um pé de Jalapão (a planta). Cava, acessa o Jalapão (a batata da planta), e avidamente rói, come, e chupa a sua seiva, que é antídoto potente contra o veneno da cobra. Certamente este fato requer mais estudos, mas é evidente em outros lugares da Amazônia. E traz algo a mais acerca desta planta incrível: é ela, certamente, um poderoso medicamento antiofídico, conhecido e utilizado pelos animais. Ou pelo menos pelo Tiú.
GALOS DO JALAPÃO
João Cabral seguramente não entendia nada do Jalapão. Mas muito entendia de galos. E por isso entendia muito dos galos do Jalapão. E conhecia, assim, um de seus aspectos esteticamente fundamentais, logo à boquinha da manhã.
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
João Cabral de Melo Neto. Tecendo a Manhã.
Bibliografia
BEHR, .M. JALAPÃO – SERTÃO DAS ÁGUAS, São Bernardo do Campo, Somos,.
HELLER, Agnes SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA, ,Madrid, Taurus.

JALAPÃO 4. O SALTO DAS CRIANÇAS, DA PONTE ALTA DA CIDADE DE PONTE ALTA, NO RIO PONTE ALTA

ENSAIOS EXPERIMENTAIS EM PSICOLOGIA
AMBIENTAL FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL 4.
JALAPÃO
SANTUÁRIO DAS ÁGUAS 
O SALTO DAS CRIANÇAS,
DA PONTE ALTA DA CIDADE DE PONTE ALTA,
NO RIO PONTE ALTA
Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.
Curioso isso de uma ponte dar o nome ao rio.
Mas é exatamente isto que acontece em Ponte Alta. O rio Ponte Alta recebe o nome de sua ponte. Aliás, não só o rio, mas a própria cidade. Que é festejada como “O Portal do Jalapão”; e que por isso, apesar de suas belezas, quase que só serve de passagem para o Rio Novo, para Mateiros, e para as outras atrações do Jalapão.
Conta a lenda que havia um barqueiro que se ocupava de atravessar as pessoas e as mercadorias para o outro lado do rio. Construiu-se, então, a primeira ponte, quando a cidade começou a se constituir. O barqueiro ficou tão transtornado que lançou uma maldição: a cidade só se libertaria do atraso quando fossem embora todos os descendentes das famílias que participaram de sua fundação.
Na verdade, há uma ponte mais alta no rio da Cidade. Uma ponte de con-creto, moderna, alta e fria, construída por um governador para rivalizar com o antecessor, que recuperara a antiga. Mas essa ponte moderna, apesar de sua imponência e utilidade, é como se não existisse. Sozinha lá em cima, em sua im-ponência.
A grande vedete da cidade é a reconstruída, e antiga, ponte de madeira. Festejadíssima, frequentadíssima. Não só por forasteiros, pelos carros e motos passantes; mas pelos turistas, e, em particular, pelas próprias pessoas da cidade, que a têm como um ponto de encontro.
Apesar de sua passageira função, a ponte tem algo de praça. É inte-ressante isso, de uma ponte algo como praça...
Mas, talvez o mais interessante, é que a ponte é uma fantástica plata-forma de salto, e de mergulho das crianças, em particular; dos adolescentes, dos jovens e adultos, no Rio Ponte Alta.
O Poder Público, inclusive preparou a ponte para tal fim. Além de sua estrutura básica, de passagem sobre o rio, a ponte possui como que molduras laterais de forma trapezoidal, feitas com grossas madeiras. O trapézio no centro da ponte possui em cada uma de suas arestas uma tosca escada feita de pedaços de madeira transversais, sem nenhum corrimão.
Os mergulhantes sobem por ali como macacos, com incrível perícia e equilíbrio. Eu se ali fosse subir, não importa se para pular ou não, teria medo, antes do pulo, de desabar antes, ao subir para a plataforma de mergulho. Caindo no lado do leito do rio, tudo bem. O problema seria o risco de cair do outro lado, no meio da própria ponte.
Acredito que é de uns seis metros a altura da ponte para a parte mais alta do trapézio, onde está a plataforma de salto. Mais uns dez metros para baixo, da ponte até o rio. E dizem que uns seis metros de profundidade da superfície do rio até o fundo, no lugar dos mergulhos... Além da plataforma de salto no alto do trapézio central, existem plataformas no nível da própria ponte.
Continuamente vemos os pulos no vazio, e o “tchibum” do baque pe-netrante do mergulho no rio. Seguido pelo afloramento do mergulhante à superfície, e pelo nado caracteristicamente muito rápido e vigoroso, seguindo por pouco tempo a correnteza do rio; e logo desviando em direção a uma das margens. Já que a correnteza do rio é forte e veloz.
O rio Ponte Alta é um rio bastante vigoroso. Descendo do alto, e da potência, do aqüífero do Jalapão, em direção ao Tocantins, ele tem uma cor-rente volumosa, compacta, impetuosa e acelerada. Apesar de uma largura re-lativamente estreita.
Com braçadas muito rápidas e fortes, para atravessá-lo na diagonal de sua impetuosa corrente, todo o ethos e estilo, dos banhantes, com relação ao rio, interagem, de um modo vigoroso, com estas suas características. Faz parte do estilo da brincadeira considerar que com a corrente do rio não se pode brin-car. Isso considerado, o rio é inteiramente lúdico.
Cruzar o rio é como o desafio de um ritual de iniciação. Os que o cruzam ainda crianças regozijam-se disso, e disso se gabam. E adquirem um novo status. Para isso, sempre, o segredo é o impressionante vigor e a rapidez das braçadas, para vencer e cruzar a correnteza do rio.
Um dia, fiquei incrédulo.
Conhecedor das relações com a água de cachorros “do mar” -- sempre discretamente apavorados, e ativamente ansiosos para retornar rapidamente para à beira –-, vi, no calor da manhã já alta e calorenta, um cachorro vira latas branco descer o suave barranco em direção ao rio. E, serelepe e despreocupado, aproximar-se do rio sem vacilar. Pela rapidez com que se movia, considerei que poderia mergulhar no rio, e sinceramente temi por ele. Com aquelas patinhas finas, enfrentar aquela torrente... Surpreendi-me, não obstante: sem reduzir a velocidade, e aparentemente sem pensar, o cachorro, na mesma velocidade em que vinha, mergulhou no rio... E não só: prolongou-se a minha surpresa, ao vê-lo nadar, rápida e vigorosamente, até atravessar o rio, sem nenhuma dificuldade, e sair num ponto mais ou menos defronte, quase em linha reta, do local onde mergulhara, na margem em que eu me encontrava... Justo como os meninos... Parou, espanou vigorosamente a água, visível e deliciosamente refrescado, na manhã escaldante, e seguiu, rápida e alegremente, em frente...
Jocosamente, pensei comigo mesmo, aí está o professor das artes do rio...
O Ponte Alta, na cidade de Ponte Alta, como disse, é um rio impetuoso. Não é muito largo, mas a quantidade de água, e em particular o declive, do centro do Jalapão até o Tocantins, faz com que suas águas corram compactas, fortes, e aparentemente mansas e profundas. De modo que é com este caráter compacto e forte da corrente do Rio Ponte Alta que os meninos têm que lidar, para atravessá-lo; e quando mergulham em suas águas... A maior parte deles lida muito ludicamente com rio. Uma habilidade que se desenvolveu, certamente, desde os índios que habitavam a região.
De modo que se deixam calculadamente levar por sua corrente, até o ponto em que querem atingir na margem, e aí derivam lateral e rapidamente, saindo da corrente, e chegando à margem. Ou simplesmente o atravessam de modo rápido e vigoroso.
O rio, desta forma, é muito yang. Brotando das entranhas do aqüífero do Jalapão. E exige esse modo vigoroso com que as crianças, jovens e ado-lescentes lidam com ele.
É até preocupante porque, do ponto de vista do chi, uma corrente assim tende a carrear a energia de suas margens, se não forem tomadas providências para compensá-la. Não é muito pensar que muito do atraso, fragilidade e aridez da cidade de Ponte Alta, além da maldição do barqueiro, pode ter a ver com isso (ainda que seja forçoso admitir a concorrência de outros “sugadores humanos” de energia). Mas é impressionante ver a contradição entre sequidão e a aridez de Ponte Alta, e volume contíguo de uma tal quantidade de água.
Um ritual de compensação é o salto e o mergulho no rio, a partir das alturas das plataformas da ponte.
Pois é um ritual, alegre ritual. Lúdico, refrescante, emocionante. Pura adrenalina. Mas, nem por isso, menos interessante, e importante. Mas corri-queiro, cotidiano.
Dinâmica e esteticamente, este ritual compensa e busca aplacar, e harmonizar, o caráter yang do rio. Um ritual de valor e importância existencial, cultural, social, urbana; que até o cachorro entende, e que só não mergulha da plataforma, porque para ele seria inviável mesmo... O que não o impede de realizar, regularmente, o seu mergulho ritual e refrescante. Eu vi.
Inevitável pensar de Maffesoli, quando se contempla o mergulho dos meninos da ponte e no rio de Ponte Alta: Frente à finitude, e à brevidade do tempo que passa, a acentuação da forma é uma ilha de solidez e eternidade.
E, como em todo ritual, o capricho na forma é um interesse e caracte-rística sine qua non dos mergulhantes do rio da ponte alta.
Começa pela habilidade de subir elegantemente aquela trave inclinada, até a parte mais alta do trapézio sobre a lateral da ponte, onde está a improvisada plataforma de mergulho.
Não é para qualquer um.
Lá em cima, em pé e esguio, ele/ela se concentra, mesmo que seja efemeramente. E pula, para frente e para cima. Em geral não mergulham de ca-beça. Chama a atenção o tórax e as pernas. É como se, no ponto mais alto do pulo, simulassem um peito de pombo, com o tórax estufado. Na subida, no salto a partir da plataforma, é como se subissem e, por um instante, parassem no ar... Enquanto as pernas se contraem, e se encolhem... Ato contínuo inicia-se a vertiginosa descida no vazio, em direção à água; de pernas. Pernas que se contraem então, e encolhem-se ao máximo, para atingir a água com a maior força... A calha central do rio, que não é larga -- do lado há mesmo pedras, e naturalmente eles nunca erram --, dizem ter seis metros de profundidade. O saltante cai vertiginosamente. E vertiginosamente, na sequência, mergulha. E some, profundamente, na corrente do rio... Que o carrega por um termo, submerso. Até que assoma à superfície. E, desencantando, nada vigorosamente em direção à margem que lhe interessa. Não raro, retornam, imediatamente, para a plataforma de salto, e reiniciam...
Prestes a sair de Ponte Alta, resolvi dar um mergulho no rio.
Da margem mesmo...
E fiquei por ali, mais para hipopótamo do que para peixe, deliciando-me na puríssima e fresca água do final da manhã.
Perifericamente vi que uns meninos mergulharam. Não da ponte, mas de uma árvore, por trás da ponte.
Logo havia um nadando na corrente, próximo. Viu-me, e orientou o seu nado-flutuação na minha direção.
Era tão pequeno... Nove ou dez anos...
Quando chegou perto, eu perguntei, Você é um menino ou é um peixe?
... Um peixe, respondeu sem vacilar, enquanto ainda nadava...
Ficou por ali, até que subiu para a margem, onde encontrou outros meninos. Pulavam dentro do rio, fazendo todo tipo de saltos e acrobacias. Era um dos mais ousados e peritos. Freqüentemente, no meio do salto, proclamava em voz alta, do alto de seus nove ou dez anos...: Eu sou mestreeeee !!!
E era mesmo...
Antes de sair, vi-o aproximando-se da borda da ponte para pular. Fiquei observando... Era muito pequeno para aquilo... Em particular para subir até a plataforma, no alto.
Foi se esgueirando para o lado externo da ponte, até sentar em um cano que a atravessa longitudinalmente... Cuidadosamente, se dependurou... Seguro apenas pelas mãos. Olhou para baixo, e soltou-se...
Em breve será também um mestre de mergulho da ponte...
Houve ainda um outro, só ouvi o labafero, que ao pular da margem meteu a cabeça numa pedra. Nada grave, mas ralou bem a testa, e a ralada era grande, e o sangue era muito. Chorava desesperado com o irmão. Com outras pessoas, ajudei para que o levassem a um socorro, para onde foi na garupa de uma moto... Não era ainda um mestre, certamente...
Bibliografia
BEHR, M. JALAPÃO – SERTÃO DAS ÁGUAS, São Bernardo do Campo, Somos,.
HELLER, Agnes SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA, ,Madrid, Taurus.

CONSIDERAÇÕES ONTOLÓGICAS E ESTÉTICAS PARA UMA ÉTICA AMBIENTAL

ENSAIOS EXPERIMENTAIS EM PSICOLOGIA
AMBIENTAL FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL 1.

Considerações ontológicas e estéticas para uma ética ambiental.


Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.

Não se trata portanto da impossibilidade de atingir uma realidade exterior aos nossos afetos, mas da impossibilidade de distinguir duas ordens de realidade: subjetiva e objetiva, ideal e material, numênica e fenomênica. Trata-se da impossibilidade de transcendência: o que quer que seja “o mundo”, o homem é parte integrante dele, e não pode reivindicar a exterio-ridade que seria necessária para instituir a si mesmo como sujeito e ao mundo como objeto. O percurso que conduz do homem ao mundo não é uma relação entre sujeito e objeto (...).
Maria Cristina F. Ferraz.



A evidência compreensiva, fenomenológico existencial, vivencial, de que somos indissociáveis do que entendemos como ambiente, inextrincáveis, é, ontologicamente, acessível a qualquer ser humano. Esta evidência ontológica, fenomenológico existencial, de nossa co-pertinência ao que chamamos de ambiente se dá, ambiguamente, no modo de sermos da tensão alteritária da movimentação mutual, e recíproca, de uma dialógica eu-tu.
É também próprio, não obstante, a este ser ambíguo que somos, ambi-entais, uma ambigüidade natural de modos de ser. Ambigüidade esta que, além da dialógica eu-tu, comporta modos eu-isso de sermos. Nos quais a vivência fenomenológica em geral, e a vivência da evidência desta condição de integridade ambiental, em particular, não se dão na imediaticidade de nosso modo humanamente ontológico, fenomenológico existencial dialógico. De modo que, assim, se cinde, se rompe, a dialógica ambiental, e nos constituímos e apartamos nós próprios como sujeitos, ao tempo que ambiente, apartado, se constitui como objeto.
A prevalência cultural desses modos não ontológicos de sermos induz-nos a uma dis-integração, e a uma des-integração, da nossa condição, e modo, ontológico, dialógica e dinamicamente íntegro, de sermos ambientais. E a uma dicotomização, na qual constituímos cada vez mais o "ambiente" como objeto; e a nós a próprios como sujeitos. Numa segregação progressiva, na qual o "ambiente", como objeto -- e não como o tu de uma vivência fenomenológico existencial dialógica --, é percebido de uma forma cada vez mais estranha, alienígena, hostil, e fóbica, utilitária, pragmática, mobilizando contra ele o nosso estranhamento, a nossa alienação, a nossa rejeição, o nosso malquerer, a nossa hostilidade, a nossa destrutividade...
No modo ontológico de sermos ambientais, estamos integrados ao am-biente, na dialógica compreensiva dos fluxos, ritmos, demandas e necessida-des que nos são dialogicamente comuns e pertinentes.


FENOMENOLOGIA, ONTOLOGIA E ONTO LOGOS AMBIENTAL
A Ontologia Fenomenológica, Fenomenologia Ontológica mostra-nos e enfatiza o modo de sermos de nossa vivência ontológica, vivência de ser no mundo. Na qual, contrariamente aos modos de nossa consciência coisificada, não nos segregamos, não nos desmembramos, do que entendemos como meio ambiente, numa dicotomização sujeito-objeto.
Originariamente, em nossa vivência ontológica, fenomenológico existencial, vigora a evidência vivencial da condição de que somente e-xistimos numa correlação intrínseca, indissociável, inevitável, incontornável, com o mundo; anteriormente a qualquer possibilidade de dissociação.
O que se chamou de intencionalidade, na Fenomenologia da tradição de Franz Brentano, descreve a evidência de que nem sujeito nem objeto, nem consciência, nem mundo, existem em si. O sujeito, e a sua consciência, não existem em si, e só existem numa correlação intrínseca com a suposta objetivi-dade e independência do mundo. O sujeito só existe enquanto direcionado (intentio) ao mundo, ao objeto. Da mesma forma que o mundo, o objeto, só existem enquanto remetidos ao sujeito, enquanto remetidos à constituição originária de sua consciência enquanto ser no mundo. Anteriormente a qual-quer possibilidade de dissociação.
Os termos eco-logia, ecos-sistema, por exemplo, são, a rigor, impróprios. Na medida em que remetem ao meio ambiente como uma casa, na qual nos inseriríamos... A evidência compreensiva, implicada, da vivência ontológica não é exatamente esta; não é a de um meio ambiente, no qual, e do qual, sub-sistiríamos como em um lar. Somos indissociável e necessariamente implica-dos com o ambiente.
Na verdade, o que assim nos é dado é o meio ambiente ao modo de sermos de nossa experiência coisificada, ôntica, eu-isso.
Ao modo de sermos de nossa originária vivência ontológica de ser no mundo, fenomenológica, e existencial, a evidência vivencial é a de que somos indissociáveis do que, de outro modo, aparece como um meio ambiente, como uma casa que abrigaria os seres vivos.
Ou seja, ao modo de sermos de nossa originária vivência ontológica de ser no mundo, nós mesmos, e o meio ambiente, perfazemos um ser único, múltiplo, e íntegro, o ambi-ente. Que, como tal, é indissociável, está aquém da dicotomização sujeito-objeto. Ontológicamente, em nossa apreensão, compreensão, fenomenológico existencial não nos segregamos do meio ambiente, e com ele perfazemos este ser íntegro. O ambi-ente. No qual o que entendemos como "nós mesmos" e "o mundo ambiente" nos damos na indissociabilidade de uma dialógica ambiental, que se constitui como dualidade eu-tu de sermos no mundo, e que caracteristicamente não permite a dicotomização sujeito-objeto.
Dito de outra forma, a vivência fenomenal de sermos no mundo se dá num modo de sermos/num modo de ser o mundo que não comporta a dicoto-mia sujeito-objeto. Mas que, ontologicamente, fenomenológico existencialmente, se dá na dialógica tensamente alteritária, e poiética, hermenêutica, da movimentação recíproca e mutual da dualidade eu-tu.

De duas formas fundamentais e originárias se constitui a ambigüidade característica do ambi-ente.
(1) Em sua propriedade, como vivência dialógica fenomenológico exis-tencial, o ambi-ente é, específica e eminentemente, ambíguo. Nesse caso, a ambigüidade do ambi-ente se constitui como a movimentação alteritária, mu-tual e recíproca, da dialógica eu-tu. Ou seja, como a relação com um outro, com uma diferença e alteridade radicais, com que dialógica e indissociavelmente somos vinculados.
Enquanto ambi-ente, vivemos, assim, na vivência do modo ontológico, fenomenológico existencial, de sermos, a dualidade da movimentação recípro-ca da relação com um tu. Com uma alteridade radical, mutual e recíproca, que de nós não se dissocia. E que, nem por isso, se reduz em sua alteridade, ou em sua radicalidade alteritária.
Na indissociável dualidade intrínseca ao modo de sermos da dialógica eu-tu, o ambiente é sempre incontornavelmente outro. E um foco autônomo de produção de sentido. Ainda que se dê no âmbito da vivência fenomenológico existencial integrada, mutual e recíproca, e que não comporta uma dicotomização sujeito-objeto.

Ambiguamente, ainda -- ainda que, no modo de sermos de nossa vivên-cia ontológica, fenomenológico existencial, o ambiente não se dissocie de nós próprios, como objeto --,
(2) fora do modo de sermos de nossa vivência ontológica originária, em nosso modo coisificado, e não-presente, não atual, de sermos, eu-isso (Buber), ele, o ambiente, se constitui, sim, objetivamente, se constitui como objeto, co-mo meio ambiente, eco-lógico. Calculável, manipulável, utilizável, realizado, coisa. Um isso, na não dialógica de um relacionamento eu-isso.
De modo que -- dimensão de sua ambigüidade -- o ambiente, que onto-lógicamente: ao modo de sermos de nossa vivência ontológica fe-nomenológico existencial, não é coisa; também se constitui como coisa, como objeto. Ao modo de sermos de um relacionamento -- ôntico, não ontológico -- eu-isso. Ainda que, propriamente, ontológicamente, ao modo da vivência ontológica fenomenológico existencial de sermos, o ambiente só se dê na dialógica do modo de sermos eu-tu. Na tensão dialógica alteritária, que não se dá como relação sujeito-objeto.
Assim, a ambigüidade ambi-ental se dá, (1) na indissociável tensão e movimentação alteritária da dialógica da relação eu-tu, intrinsecamente mutual e recíproca. Na qual o ambiente não existe como objeto, mas existe, alteritá-riamente, como um tu, é um outro, diferença ativa, autônoma e radical, um foco autônomo de produção de sentido...
Da mesma forma, (2) a ambigüidade do ambi-ente se dá no fato de que ele, o ambiente, ambígua e alternativamente, se constitui, em consonância com os modos de sermos, ora como um tu, na dialógica da relação eu-tu; ora como um isso, como objeto, como coisa, uso e utilidade, característicos do modo de sermos do relacionamento eu-isso.

O ambiente como coisa - no modo eu-isso, ôntico, de sermos - não é um processo fenomenológico existencial -- dialógico, ontológico --, de geração de sentido. Não é dado como uma dinâmica de logos de integridade e implicação originária, fenomenológicas, ação, atualização. Não é, em particular, fenômeno, fenômeno-logos, não é existencial (eksistencial). É o ambiente acontecido, coisificado, que, como experiência, não comporta, em si, a potência, a possibilidade, e a ação, a atualização. Não comporta o pres-ente e a pres-ença, não comporta a atualidade. É só passado. Não comporta a consciência, e, eventualmente, a motricidade, como processos compreensivos, fenomenológico existenciais, de desdobramento de sentido, e de ação. Não é o ambiente atual, e presente.
Em nosso modo ontológico, eu-tu, de sermos e devir, o ambiente, indis-sociável em termos de dicotomização sujeito-objeto, é inteiramente presente e atual. Ou seja, é pres-ente, no sentido de que não é da ordem da coisidade. É pres-ente, pré-coisa. Dá-se, não ao modo de sermos de coisa, mas ao modo de sermos de pré-coisa, pres-ente, pré-ôntico. Ainda que, passada a momen-taneidade da vivência ontológica, fenomenológico existencial dialógica, converta-se, inevitavelmente, em coisa. Possibilidade atualizada, realizada, um isso. O que é natural.
Em sua efetividade, o ambiente é, assim, especificamente atual, atuali-dade e atualização (vivência fenomenológico existencial atual). Na medida em que é inteiramente da ordem do ato, da ação, da atualização. No sentido onto-lógico do termo, no sentido da vivência ontológica, o ambiente só existe como ato, como ação, como atualização. Ou seja, o ambiente só existe ontológica-mente como possibilidade, como potência, como possível que se desdobra em atualização, em ação, fenômeno lógica.
Daí que, similarmente a nós próprios, em nosso modo ontológico feno-menológico existencial de sermos, o ambiente seja, essencial e eminentemente, hermenêutico, no sentido compreensivo da interpretação, atualização, fenomenológico existencial, de possibilidades.
Fora de nosso modo de ser ontológico, e isto constitui o outro pólo desta dimensão de sua ambigüidade -- fora de nosso modo de ser fenomenológico existencial, dialógico --, no modo coisificado de sermos, o ambiente se constitui como coisa, como fato, como acontecido, como dado, como morto. Mormente quando este modo de sermos, coisificado, se instala e se torna hegemônico, enfraquecendo a natural alternância dele como modo de sermos com o modo de sermos ontológico, fenomenológico existencial, dialógico.
Ao seu nível próprio -- ao nível da propriedade de sua específica vivên-cia fenomenológico existencial --, o ambiente é vivo, vividamente vivido, é estésico, e estético.
Vivencialmente, estésica, e esteticamente vivido, e avaliado.
De modo que, na vivência ambiental fenomenológico existencial, há a constituição de um logos fenomenológico ambiental, que, como tal, ontológico, fenomenológico existencial, vivido, é eminentemente estésico, e estético. E que é, nietzscheanamente, a raiz e o critério de uma ética ambiental, de uma ética da sustentabilidade.
Esse logos estético do ambiente, sintoma de saúde humana e am-biental, pode se dar sempre em culturas que se permitem a prevalência de uma vivência dialógica, fenomenológico existencial, do ambiente.
Assim, podemos sentir a presença essencial deste logos ambiental na carta crítica do Cacique Seatle ao Presidente dos Estados Unidos, que queria comprar as terras de sua tribo.
O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro: o animal, a árvore, o ho-mem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao seu próprio mau cheiro. (...)
Vamos meditar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se nos decidirmos a aceitar, imporei uma condição: O homem branco deve tratar os animais desta terra como seus irmãos.
O que é o homem sem os animais?
Se os animais se fossem, o homem morreria de uma gran-de solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, logo também acontece com o homem. Há uma lição em tudo. Tudo está ligado.
Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com a vida de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas: que a ter-ra é nossa mãe. Tudo o que acontece à Terra, acontece também aos filhos da Terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspin-do em si mesmos.
Disto nós sabemos: a terra não pertence ao homem; o ho-mem é que pertence à terra. Disto sabemos: todas as coisas en-tão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.
Tudo o que acontece à Terra acontece, também, aos filhos da Terra.
O homem não teceu a teia da vida: ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que o homem fizer ao tecido, estará fazendo a si mesmo. Mesmo o homem branco, cujo Deus caminha e fala como ele de amigo para amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo. Vere-mos.
De uma coisa estamos certos (e o homem branco poderá vir um dia a descobrir): Deus é um só, qualquer que seja o nome que lhe dêem. Vocês podem pensar que O possuem como dese-jam possuir a nossa terra. Mas não é possível. Ele é o Deus do homem, e sua compaixão é igual para o homem branco e para o homem vermelho. A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar o seu Criador. Os homens brancos também passarão; talvez mais cedo do que todas as outras tribos. Sujem suas camas, e uma noi-te acordarão sufocados pelos próprios dejetos.
Ao desaparecerem, vocês brilharão intensamente, ilumina-dos pela força do Deus que os trouxe a esta terra, e que, por al-guma razão especial, lhes deu o domínio sobre ela e sobre o ho-mem vermelho. Esse destino é um mistério para nós, pois somos selvagens, mas não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos das florestas densas impregnados do cheiro de muitos homens, e a vista dos morros obstruída por fios que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a água? Desapa-receu. É o final da vida e o inicio da luta para sobreviver.
Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa Idéia nos parece um pouco estranha. Se não possuí-mos o frescor do ar, e o brilho da água, como é possível comprá-los.
Cada pedaço de terra é sagrado nas tradições de meu po-vo. Cada ramo brilhante de pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira, e inseto a zumbir, são sagrados na memória e na experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lem-branças do homem vermelho...
Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados.
Se lhes vendermos a terra, vocês devem se lembrar de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada, e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz dos meus ancestrais.
Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar para seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também. E que, por-tanto, vocês devem doar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significa-do que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e rou-ba da terra tudo de que necessita. A terra, para ele, não é sua ir-mã, mas sua inimiga e, quando ele a conquista, extraindo dela o que deseja, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rouba da terra aquilo que seria de seus filhos, e não se importa... Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.
Eu não sei... Os nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez porque o homem vermelho seja um selvagem e não compreenda.
Não há um lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera, ou o bater de asas de um inseto.
Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não com-preendo. O ruído das cidades parece somente insultar os ouvidos. E o que resta de um homem, se não pode ouvir o choro solitário de uma ave, ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa, à noite? Eu sou um homem vermelho, e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpado por uma chuva diurna, ou perfumado pelos pinheiros.


DIALÓGICA AMBIENTAL
Como o nosso corpo, o ambiente que perfazemos, solidariamente impli-cados, em nossa vivência ontológica, fenomenológico existencial -- já que é apenas ao modo de sermos desta vivência que o ambiente pode propriamente se dar --, possui desconhecidas e fundamentais dimensões. Mais do que des-conhecidas, essas dimensões são dimensões específica e eminentemente ativas, lógicas -- no sentido da harmonia - em sua funcionalidade, e incontroláveis. Cíclicas, inovativas, nutritivas, sustentam a vida.
O ambiente tem assim a sua dimensão irrevogavelmente desco-nhecida, misteriosa e ativa. Que subsiste e atua segundo a alteridade radical de um tu. E que gera, preserva e sustenta a vida humana, e de todos os seres. O verso do Tao Te Ching apreende a particularidade destas dimensões e dinâmicas ambientais, e tematiza sacralidade do ambiente, e a importância do cuidado ao lidarmos com elas.
Quereria alguém arrebatar o mundo e dele fazer o que quises-se?
Não vejo como poderia ter sucesso.
O mundo é um canal sagrado, que não deve ser indevidamente manipulado, nem agarrado.
Manipulá-lo indevidamente é espoliá-lo, agarrá-lo é perdê-lo.
Para todas as coisas, na verdade, há um tempo para ir à dian-teira, e um tempo para seguir à retaguarda;
Um tempo para a respiração lenta e um tempo para a respira-ção acelerada;
Um tempo de aumento de força e um tempo de decadência;
Um tempo para estar de cima e um tempo para estar debaixo.
O sábio, portanto, evita todos os extremos, excessos e extra-vagâncias.

O logos, o sentido da vivência ambiental, do ser ambiental que somos, fenomenológico existencial dialógico, nos é dado, assim, em nosso modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial dialógico. A compreensão, portanto, de nossa intrínseca ambientalidade como seres, pressupõe assim a natural alternância entre o nosso modo de vivência ontológica, e o nosso modo de vivência não ontológica, e a prevalência ontológica daquele modo de sermos.
Quando é obstruída a natural alternância entre esses dois modos de sermos, prejudicada, não nos é dada a vivência compreensiva de que nós mesmos e o que entendemos como meio ambiente fazemos, na verdade, parte de uma integridade ontológica, que é indissociável do ponto de vista da vivência fenomenológico existencial. E que se dá numa dialógica sensível, estésica, e estética, que dura indefinidamente.
A prevalência da prejudicação da alternância entre os nossos modos de vivência ontológica compreensiva, e o modo de nossa experiência não ontoló-gica objetivista, nos leva à ruptura da apreensão compreensiva de nossa inte-gridade e de nossa integração dialógica ambiental. Levando a uma relação de estranhamento, de alienação, problemática, utilitária e hostil com um meio ambiente, constituído rigidamente como objeto, como coisa, inevitavelmente a ser, abusivamente, manipulado, espoliado, a ser explorado, hostilizado, e des-truído.
A vivência do logos ambiental, da configuração de sentidos ambientais, característicos de nossa vivencia ontológica fenomenológico existencial dialó-gica, é, como toda a vivência dialógica, regeneradora e transformadora de nos-sas condições existenciais. É vivência de múltiplo que é diferente da soma de partes. Resgata-nos da determinação a que somos inexoravelmente destina-dos na prevalência do modo eu-isso de sermos, e propicia-nos o retorno à in-determinação da potência da vivência de possibilidades. Possibilidades estas que se dão como atualização fenomenológica dos os elementos ambientais vividos, e como potências para atualizações em nossa existência. A vivência do logos ambiental reitera nossa indissociável pertinência ao todo da natureza, a suas inexoráveis dinâmicas de criação e finitude, a sua intrínseca sabedoria.
Como vivência, o logos ambiental é eminente e especificamente estési-co: corpo, vivido e sentidos. Portador dos sentidos da perfeição e da beleza, como vivência, o logos ambiental é eminentemente avaliativo. O privilégio de sua vivência e modo avaliativo é o que chamamos de estética, uma ética da estesia. Ou seja, o modo do procedimento avaliativo que procede, como ação, atualização, da ontológica vivência fenomenológico existencial dialógica de possibilidades. Devir e afirmação de possibilidades da vivência do fenômeno lógica ambiental.
De modo que, mais do que nunca, a verdade e o valor não são teóricos.
Mas, específica e eminentemente, ontológicos, fenomenológico existen-ciais dialógicos.
Em sendo assim, as condições de uma estética e de uma ética ambien-tais envolvem o retornar - o re-voltar -, a partir do ambiente como coisa, como um isso - objeto, objetivo, manipulável, conhecível, utilizável, pragmatizável --, o retornar para o ambiente como vivência ontológica. Na verdade, o retornar à alternância natural entre o modo pragmático de sermos, o modo eu-isso de sermos, e o modo eu-tu de sermos. Ontológico, fenomenológico existencial, dialógico.
É o retorno ao modo ontológico de sermos desta alternância que pode resgatar as condições de apreciação e avaliação ontológicas do ambiente. Que pode propiciar o resgate do respeito e da reverência pelo ambiente, na verdade a sacralidade do ambiente. Como uma monumental alteridade radical, ativa e dinâmica, da qual somos partícipes. E da qual podemos ser, propriamente, partícipes esteticamente ativos, e avaliativos. É o retorno ao ambiente como vivência ontológica, fenomenológico existencial dialógica, o ambiente como a alteridade radical de um tu, que pode ser o fundamento de uma estética, especificamente ética, ambiental. O fundamento de uma estética, especificamente ética, da sustentabilidade, e da preservação ambientais.


O logos, o sentido da vivência ambiental, do ser ambiental que somos, fenomenológico existencial dialógica, nos é dado, assim, em nosso modo ontológico de sermos, fenomenológico existencial dialógico. A compreensão, portanto, de nossa intrínseca ambientalidade como seres, pressupõe assim a natural alternância entre o nosso modo de vivência ontológica, e o nosso modo de vivência não ontológica.
Quando é obstruída a natural alternância entre esses dois modos de sermos, prejudicada, não nos é dada a vivência compreensiva de que nós mesmos e o que entendemos como meio ambiente fazemos, na verdade, parte de uma integridade ontológica, que é indissociável, do ponto de vista da vivência fenomenológico existencial. E que se dá numa dialógica sensível, estésica, e estética, que dura indefinidamente.
A prevalência da prejudicação da alternância entre os nossos modos de vivência ontológica compreensiva, e o modo de nossa experiência não ontoló-gica objetivista, nos leva à ruptura da apreensão compreensiva de nossa inte-gridade e de nossa integração dialógica ambiental. Levando a uma relação problemática, utilitária e hostil com um meio ambiente constituído como objeto inevitavelmente a ser espoliado, a ser explorado, hostilizado, e destruído.
O resgate da alternância entre os nossos modos fenomenológico exis-tencial, e o nosso modo não fenomenológico existencial propicia, na vivência deste, a vivência propriamente dita do ambiente, que não é da ordem das coi-sas. É o modo de sermos desta nossa vivência ontológica, fenomenológico existencial dialógica que permite a vivência estésica (corpo, sentidos e vivido) do ambiente. Vivência intrinsecamente avaliativa, de uma estética, que se constitui como ética ambiental.


Bibliografia.
BUBER, Martin EU E TU. São Paulo, Centauro, 2001.
HEIDEGGER, Martin SER E TEMPO. Fondo de Cultura, 1985.
NIETZSCHE, Frederich GENEALOGIA DA MORAL.