sábado, 31 de março de 2018

JALAPÃO 4. O SALTO DAS CRIANÇAS, DA PONTE ALTA DA CIDADE DE PONTE ALTA, NO RIO PONTE ALTA

ENSAIOS EXPERIMENTAIS EM PSICOLOGIA
AMBIENTAL FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL 4.
JALAPÃO
SANTUÁRIO DAS ÁGUAS 
O SALTO DAS CRIANÇAS,
DA PONTE ALTA DA CIDADE DE PONTE ALTA,
NO RIO PONTE ALTA
Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.
Curioso isso de uma ponte dar o nome ao rio.
Mas é exatamente isto que acontece em Ponte Alta. O rio Ponte Alta recebe o nome de sua ponte. Aliás, não só o rio, mas a própria cidade. Que é festejada como “O Portal do Jalapão”; e que por isso, apesar de suas belezas, quase que só serve de passagem para o Rio Novo, para Mateiros, e para as outras atrações do Jalapão.
Conta a lenda que havia um barqueiro que se ocupava de atravessar as pessoas e as mercadorias para o outro lado do rio. Construiu-se, então, a primeira ponte, quando a cidade começou a se constituir. O barqueiro ficou tão transtornado que lançou uma maldição: a cidade só se libertaria do atraso quando fossem embora todos os descendentes das famílias que participaram de sua fundação.
Na verdade, há uma ponte mais alta no rio da Cidade. Uma ponte de con-creto, moderna, alta e fria, construída por um governador para rivalizar com o antecessor, que recuperara a antiga. Mas essa ponte moderna, apesar de sua imponência e utilidade, é como se não existisse. Sozinha lá em cima, em sua im-ponência.
A grande vedete da cidade é a reconstruída, e antiga, ponte de madeira. Festejadíssima, frequentadíssima. Não só por forasteiros, pelos carros e motos passantes; mas pelos turistas, e, em particular, pelas próprias pessoas da cidade, que a têm como um ponto de encontro.
Apesar de sua passageira função, a ponte tem algo de praça. É inte-ressante isso, de uma ponte algo como praça...
Mas, talvez o mais interessante, é que a ponte é uma fantástica plata-forma de salto, e de mergulho das crianças, em particular; dos adolescentes, dos jovens e adultos, no Rio Ponte Alta.
O Poder Público, inclusive preparou a ponte para tal fim. Além de sua estrutura básica, de passagem sobre o rio, a ponte possui como que molduras laterais de forma trapezoidal, feitas com grossas madeiras. O trapézio no centro da ponte possui em cada uma de suas arestas uma tosca escada feita de pedaços de madeira transversais, sem nenhum corrimão.
Os mergulhantes sobem por ali como macacos, com incrível perícia e equilíbrio. Eu se ali fosse subir, não importa se para pular ou não, teria medo, antes do pulo, de desabar antes, ao subir para a plataforma de mergulho. Caindo no lado do leito do rio, tudo bem. O problema seria o risco de cair do outro lado, no meio da própria ponte.
Acredito que é de uns seis metros a altura da ponte para a parte mais alta do trapézio, onde está a plataforma de salto. Mais uns dez metros para baixo, da ponte até o rio. E dizem que uns seis metros de profundidade da superfície do rio até o fundo, no lugar dos mergulhos... Além da plataforma de salto no alto do trapézio central, existem plataformas no nível da própria ponte.
Continuamente vemos os pulos no vazio, e o “tchibum” do baque pe-netrante do mergulho no rio. Seguido pelo afloramento do mergulhante à superfície, e pelo nado caracteristicamente muito rápido e vigoroso, seguindo por pouco tempo a correnteza do rio; e logo desviando em direção a uma das margens. Já que a correnteza do rio é forte e veloz.
O rio Ponte Alta é um rio bastante vigoroso. Descendo do alto, e da potência, do aqüífero do Jalapão, em direção ao Tocantins, ele tem uma cor-rente volumosa, compacta, impetuosa e acelerada. Apesar de uma largura re-lativamente estreita.
Com braçadas muito rápidas e fortes, para atravessá-lo na diagonal de sua impetuosa corrente, todo o ethos e estilo, dos banhantes, com relação ao rio, interagem, de um modo vigoroso, com estas suas características. Faz parte do estilo da brincadeira considerar que com a corrente do rio não se pode brin-car. Isso considerado, o rio é inteiramente lúdico.
Cruzar o rio é como o desafio de um ritual de iniciação. Os que o cruzam ainda crianças regozijam-se disso, e disso se gabam. E adquirem um novo status. Para isso, sempre, o segredo é o impressionante vigor e a rapidez das braçadas, para vencer e cruzar a correnteza do rio.
Um dia, fiquei incrédulo.
Conhecedor das relações com a água de cachorros “do mar” -- sempre discretamente apavorados, e ativamente ansiosos para retornar rapidamente para à beira –-, vi, no calor da manhã já alta e calorenta, um cachorro vira latas branco descer o suave barranco em direção ao rio. E, serelepe e despreocupado, aproximar-se do rio sem vacilar. Pela rapidez com que se movia, considerei que poderia mergulhar no rio, e sinceramente temi por ele. Com aquelas patinhas finas, enfrentar aquela torrente... Surpreendi-me, não obstante: sem reduzir a velocidade, e aparentemente sem pensar, o cachorro, na mesma velocidade em que vinha, mergulhou no rio... E não só: prolongou-se a minha surpresa, ao vê-lo nadar, rápida e vigorosamente, até atravessar o rio, sem nenhuma dificuldade, e sair num ponto mais ou menos defronte, quase em linha reta, do local onde mergulhara, na margem em que eu me encontrava... Justo como os meninos... Parou, espanou vigorosamente a água, visível e deliciosamente refrescado, na manhã escaldante, e seguiu, rápida e alegremente, em frente...
Jocosamente, pensei comigo mesmo, aí está o professor das artes do rio...
O Ponte Alta, na cidade de Ponte Alta, como disse, é um rio impetuoso. Não é muito largo, mas a quantidade de água, e em particular o declive, do centro do Jalapão até o Tocantins, faz com que suas águas corram compactas, fortes, e aparentemente mansas e profundas. De modo que é com este caráter compacto e forte da corrente do Rio Ponte Alta que os meninos têm que lidar, para atravessá-lo; e quando mergulham em suas águas... A maior parte deles lida muito ludicamente com rio. Uma habilidade que se desenvolveu, certamente, desde os índios que habitavam a região.
De modo que se deixam calculadamente levar por sua corrente, até o ponto em que querem atingir na margem, e aí derivam lateral e rapidamente, saindo da corrente, e chegando à margem. Ou simplesmente o atravessam de modo rápido e vigoroso.
O rio, desta forma, é muito yang. Brotando das entranhas do aqüífero do Jalapão. E exige esse modo vigoroso com que as crianças, jovens e ado-lescentes lidam com ele.
É até preocupante porque, do ponto de vista do chi, uma corrente assim tende a carrear a energia de suas margens, se não forem tomadas providências para compensá-la. Não é muito pensar que muito do atraso, fragilidade e aridez da cidade de Ponte Alta, além da maldição do barqueiro, pode ter a ver com isso (ainda que seja forçoso admitir a concorrência de outros “sugadores humanos” de energia). Mas é impressionante ver a contradição entre sequidão e a aridez de Ponte Alta, e volume contíguo de uma tal quantidade de água.
Um ritual de compensação é o salto e o mergulho no rio, a partir das alturas das plataformas da ponte.
Pois é um ritual, alegre ritual. Lúdico, refrescante, emocionante. Pura adrenalina. Mas, nem por isso, menos interessante, e importante. Mas corri-queiro, cotidiano.
Dinâmica e esteticamente, este ritual compensa e busca aplacar, e harmonizar, o caráter yang do rio. Um ritual de valor e importância existencial, cultural, social, urbana; que até o cachorro entende, e que só não mergulha da plataforma, porque para ele seria inviável mesmo... O que não o impede de realizar, regularmente, o seu mergulho ritual e refrescante. Eu vi.
Inevitável pensar de Maffesoli, quando se contempla o mergulho dos meninos da ponte e no rio de Ponte Alta: Frente à finitude, e à brevidade do tempo que passa, a acentuação da forma é uma ilha de solidez e eternidade.
E, como em todo ritual, o capricho na forma é um interesse e caracte-rística sine qua non dos mergulhantes do rio da ponte alta.
Começa pela habilidade de subir elegantemente aquela trave inclinada, até a parte mais alta do trapézio sobre a lateral da ponte, onde está a improvisada plataforma de mergulho.
Não é para qualquer um.
Lá em cima, em pé e esguio, ele/ela se concentra, mesmo que seja efemeramente. E pula, para frente e para cima. Em geral não mergulham de ca-beça. Chama a atenção o tórax e as pernas. É como se, no ponto mais alto do pulo, simulassem um peito de pombo, com o tórax estufado. Na subida, no salto a partir da plataforma, é como se subissem e, por um instante, parassem no ar... Enquanto as pernas se contraem, e se encolhem... Ato contínuo inicia-se a vertiginosa descida no vazio, em direção à água; de pernas. Pernas que se contraem então, e encolhem-se ao máximo, para atingir a água com a maior força... A calha central do rio, que não é larga -- do lado há mesmo pedras, e naturalmente eles nunca erram --, dizem ter seis metros de profundidade. O saltante cai vertiginosamente. E vertiginosamente, na sequência, mergulha. E some, profundamente, na corrente do rio... Que o carrega por um termo, submerso. Até que assoma à superfície. E, desencantando, nada vigorosamente em direção à margem que lhe interessa. Não raro, retornam, imediatamente, para a plataforma de salto, e reiniciam...
Prestes a sair de Ponte Alta, resolvi dar um mergulho no rio.
Da margem mesmo...
E fiquei por ali, mais para hipopótamo do que para peixe, deliciando-me na puríssima e fresca água do final da manhã.
Perifericamente vi que uns meninos mergulharam. Não da ponte, mas de uma árvore, por trás da ponte.
Logo havia um nadando na corrente, próximo. Viu-me, e orientou o seu nado-flutuação na minha direção.
Era tão pequeno... Nove ou dez anos...
Quando chegou perto, eu perguntei, Você é um menino ou é um peixe?
... Um peixe, respondeu sem vacilar, enquanto ainda nadava...
Ficou por ali, até que subiu para a margem, onde encontrou outros meninos. Pulavam dentro do rio, fazendo todo tipo de saltos e acrobacias. Era um dos mais ousados e peritos. Freqüentemente, no meio do salto, proclamava em voz alta, do alto de seus nove ou dez anos...: Eu sou mestreeeee !!!
E era mesmo...
Antes de sair, vi-o aproximando-se da borda da ponte para pular. Fiquei observando... Era muito pequeno para aquilo... Em particular para subir até a plataforma, no alto.
Foi se esgueirando para o lado externo da ponte, até sentar em um cano que a atravessa longitudinalmente... Cuidadosamente, se dependurou... Seguro apenas pelas mãos. Olhou para baixo, e soltou-se...
Em breve será também um mestre de mergulho da ponte...
Houve ainda um outro, só ouvi o labafero, que ao pular da margem meteu a cabeça numa pedra. Nada grave, mas ralou bem a testa, e a ralada era grande, e o sangue era muito. Chorava desesperado com o irmão. Com outras pessoas, ajudei para que o levassem a um socorro, para onde foi na garupa de uma moto... Não era ainda um mestre, certamente...
Bibliografia
BEHR, M. JALAPÃO – SERTÃO DAS ÁGUAS, São Bernardo do Campo, Somos,.
HELLER, Agnes SOCIOLOGIA DA VIDA COTIDIANA, ,Madrid, Taurus.

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